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|Entrevista

Manuel Loff. «Quanto menos esquerda houver mais o fascismo avança»

A conversa teve como ponto de partida as eleições italianas. Manuel Loff desmente a ideia que a extrema-direita sobe com os votos da esquerda e afirma que os novos fascismos foram relegitimados pela direita tradicional e pelo discurso ideológico do choque de civilizações.

O historiador afirma que é preciso combater a desmobilização no voto popular.  
O historiador afirma que é preciso combater a desmobilização no voto popular.  CréditosDR / DR

No seu artigo no Público, faz um paralelo entre a ascensão ao poder de Mussolini e a previsível vitória de Giorgia Meloni, dos Irmãos de Itália, nas próximas eleições italianas. Não há uma diferença muito grande no processo que leva ao aparecimento desta extrema-direita e ao processo que leva ao aparecimento do fascismo? Alguns marxistas consideram que o fascismo e o nazismo na Alemanha surgiram também como forma de resposta ao ascenso da luta de classes e dos partidos comunistas, situação que está longe de se verificar hoje em Itália.

Estou de acordo consigo, mas o fascismo - enquanto movimento e enquanto extrema-direita muito mais radical que as outras direitas e, por comparação, às direitas anti-revolucionárias dos séculos XVIII e XIX que também nasceram como reacção às revoluções desse período - é uma direita adequada à sociedade de massas. É verdade que o fascismo nasce coincidindo com o avanço, no pós-revolução soviética, da classe operária e a intensificação da luta de classes, mas não é aí que assume o poder. Toma o poder em Itália em 1922 e 1933 na Alemanha. Em ambos os casos surge em coligação com a direita tradicional e sendo uma componente minoritária, no caso italiano, do resto da direita. O fascismo italiano nasce em 1919, mas não toma o poder aí, nem em 20, nem em 21, vai ter de esperar pela derrota do biennio rosso [foi um período de dois anos de intenso conflito social na Itália que se seguiu após a Primeira Guerra Mundial. O período revolucionário foi seguido por uma violenta reação dos camisas negras fascistas e pela Marcha sobre Roma liderada por Benito Mussolini em 1922.] e pelo refluxo do movimento operário para ganhar impulso para se lançar ao poder. O que confirma uma das teses que coloquei no artigo do Público, que é quanto menos esquerda a sério houver, não confundir com a social-democracia, mais a extrema-direita vai avançar. Quanto menos esquerda operária e de frente popular existir, com um conteúdo de classe e marcadamente à esquerda, mais o fascismo avança. Esse é o caso quer de 22 em Itália, quer de 33 na Alemanha.

Enquanto o fascismo não punha em causa o capitalismo, houve mais confusão na relação entre a extrema-direita hoje e o neoliberalismo. Aparecendo muitas vezes a contestar aspectos da globalização económica e financeira. Fazendo até uma certa defesa das condições laborais mínimas e de um maior poder do Estado.

Não estou de acordo. No caso italiano, teria de ver com mais pormenor, o programa dos Irmãos de Itália não era a defesa dos postos de trabalho. Deve recordar-se que nas eleições de 2018, nas quais a Liga é o segundo partido mais votado, a seguir ao Movimento Cinco Estrelas, a proposta de Salvini era a Flat Tax [taxa única de impostos independentemente do volume dos rendimentos]. E no caso da Frente Nacional, em França, depois transformada em União Nacional, o que se tem é uma mudança de linha. Essa alteração não se dá com a chegada de Marine Le Pen ao poder, mas no momento em que ela e os seus conselheiros, nomeadamente Florian Philippot, se vêem que com a crise muito evidente da social-democracia francesa - com os cinco anos da presidência absolutamente catastróficos de François Hollande, com ministros tão «socialistas» como Macron, ainda por cima numa pasta como a Economia -, a extrema-direita apercebe-se do valor estratégico de ir apropriar-se, de uma forma pouco séria, de determinadas bandeiras que a esquerda sempre teve, em relação, por exemplo, à política neoliberal da União Europeia.

Subscrevo a tese que esta extrema-direita é neofascista. Isto é importante para dizer que se queremos comparar com há 100 anos, como faço, temos de ter pelo menos duas versões do fascismo. Ao longo da história temos de ter variadíssimas versões, adequadas ao ciclo histórico em cada momento, das ideologias e das organizações que se reconhecem exclusivamente nessa fisiologia, a começar pelos comunistas. Sem esquecer que ser-se comunista em 1917 é bastante diferente que ser-se comunista em 2022, por exemplo. Tem a ver com os ciclos históricos e com a forma como se fazem propostas, de natureza política, e como se age. Da mesma forma que a social-democracia de antes 1914, e da votação dos créditos de guerra, é diferente da de 1918 e daquela dos nossos dias.

Para fechar a discussão, parece-me que são neofascistas. Por serem neofascistas têm, forçosamente, uma herança histórica do fascismo de há cem anos, mas é evidente que se comportam no contexto social em que vivem de formas diferenciadas. Nenhuma ideologia, com o mínimo de capacidade de enraizamento social, sobrevive sem se adaptar.

Há uma coisa que aparece como evidente, o crescimento da extrema-direita, na sua versão actual, faz-se como reacção às políticas neoliberais e a uma certa crise de representatividade política.

A segunda sim, mas a primeira não estou nada convencido disso. Eu não acho que com a ultradireita, racista, a caminho da via de neofascização na Europa e na América, se verifique isso. A ultradireita que mais sucesso tinha nos anos 70, que nos tendemos a esquecer, era a escandinava. Os partidos desse tipo na Noruega e na Dinamarca tiveram um grande sucesso a partir de quê? Na luta contra o Estado de bem-estar social; em propostas como as das Flat Tax, para acabar com a progressividade dos impostos; no combate àquilo que eles entendem ser uma política propiciadora do parasitismo. Essa extrema-direita defendia nos anos 70, depois da primeira crise petrolífera de 1973, que os desempregados viviam à custa do Estado. A extrema-direita criou-se, numa primeira fase, a partir do combate ao Estado Social, atacando os sectores populares que dele beneficiavam e, numa segunda fase, a partir dos anos 80/90, a ser contra a propagada vaga de imigrantes.

Por que se mantem essa extrema-direita hoje, se Macron e os liberais de serviço já fazem esse papel?

A extrema-direita dos libertários norte-americanos, que ama Hayek e a Escola de Chicago, surge numa fase em que ainda há um amplo consenso, que liberais e conservadores não se tinham atrevido a romper, em relação à função pacificadora do capitalismo que o Estado Social tinha. Com a queda da União Soviética e do campo socialista, esta função pacificadora, que se baseava em parte no medo do comunismo, passa a ser posta em causa por vários sectores políticos.

Mas não há uma alteração nos tempos de hoje? Quando se vê o debate ente Macron e Le Pen,  o único que fala de dignidade do trabalho, de baixos salários, de uberização e precarização do trabalho é...

…  a Le Pen. Quando a extrema-direita atinge um mínimo de representatividade em França, a partir de 1984, já estamos em plena fase de Jacques Delors nas instituições europeias. O Acto Único é de 1986, as primeiras eleições em que a Frente Nacional chega aos 10% são as Europeias de 1984.

Em 1965, o candidato de extrema-direita [advogado do escritor colaboracionista Céline] teve 5,2% e representava muito menos [apesar de ser da extremamente anticomunista, apoiou Miterrand na segunda volta, o que fez com que Jean-Marie Le Pen, de quem foi padrinho de uma das filhas, abandonasse a sua campanha]. Em 1984, a batalha da Frente Nacional não é contra actos únicos nem coisa nenhuma. A extrema-direita chegou à crítica ao neoliberalismo, via crítica à globalização (mundialização, como a chamam os franceses) fomentada por organizações supranacionais. As objecções da ultradireita, ainda nos debates de hoje, em França, Itália, países escandinavos e na Europa Oriental, não são sobre o conteúdo, mas apenas sobre a natureza do processo de decisão política que congela na superestrutura europeia a capacidade de decidir, que estes partidos entendem dever ser tomadas à escala nacional. A extrema-direita está a liderar governos há bastantes anos na Polónia e na Hungria. Onde é que estão os pedidos de saída da União Europeia? E  na Croácia e na Eslovénia, onde a extrema-direita entra no poder, onde é que estão as críticas à união monetária e ao euro? As suas críticas centram-se quase exclusivamente na política de refugiados e imigração, em que a União Europeia não tem competências como tal. E repetem toda uma retórica, muito semelhante à dos nazis na República de Weimar, em que os nazis viam marxismo por todo o lado. Quando nem o SPD governou mais de um terço desses anos, os nazis descreviam como marxismo tudo quando era Weimar. A extrema-direita de todos esses países descreve como marxismo cultural e ideologia de género e multiculturalidade de muitas das políticas europeias. É sobretudo nesse campo que são feitas as críticas à UE.

Recordo o caso italiano. Quem é que ameaçou sair do euro nas eleições de 2018 em Itália? Foi o Movimento Cinco Estrelas, não foi Salvini. Este,  como agora Meloni, vai governar com um dos maiores ultraliberais da política italiana das últimas décadas, chamado Sílvio Berlusconi. Não há incompatibilidade entre neoliberalismo e extrema-direita. Há um erro histórico de análise ao se vir dizer que o fascismo é uma ideologia estatizante do ponto de vista económico, cuja crítica ao liberalismo tem uma forte componente económica. O corporativismo é uma crítica ao capitalismo liberal, mas não é uma crítica ao capitalismo. Os únicos bem que são nacionalizados, no período do nazismo, são bens das minorias étnicas, sobretudo dos judeus.

Há também uma retórica tipicamente neoliberal que tem procurado regressar nos últimos vinte anos, por via da Europa Oriental, ao conceito de totalitarismo e agora no Ocidente ao conceito de populismo, tentando amalgamar do mesmo lado contra o capitalismo: a extrema-direita e aquilo que esse sector chama a extrema-esquerda.

É a retórica da autocracia contra democracia.

Exactamente, o que está agora na moda com a guerra da Ucrânia. O que está a acontecer à escala de todo o Ocidente, e nomeadamente na Europa Ocidental - onde ainda havia um conjunto de categorias para descrever as realidades existentes, nas quais o conceito de fascismo e antifascismo continuavam  vigentes -,  é que estamos a importar dos nacionalismos neoliberais e neoconservadores da Europa Oriental e dos países pós-comunistas a linguagem que eles usam.

Voltando atrás, é bom recordar que toda a discussão que Le Pen fez sobre o aumento do custo de vida e as questões sociais é feita na segunda volta com Macron. É preciso fazer a separação entre a campanha que faz na primeira volta e na segunda volta. Na primeira volta, o campeão desse discurso não foi a senhora Le Pen, foram evidentemente Mélenchon e vários outros candidatos à esquerda, incluindo o comunista. É óbvio que na segunda volta ela levanta estas questões para tentar captar parte do eleitorado que votou Mélenchon. Última nota, quando se entra na discussão das medidas contra o aumento do custo de vida, na Assembleia Nacional, já depois do governo Macron ter perdido a maioria absoluta, a extrema-direita obviamente que não votou com a esquerda. A extrema-direita não subscreve as críticas da esquerda às políticas sociais do macronismo.        

Em processos como o Brexit e até em votações em antigas zonas industriais nos EUA na eleição de Trump não existem por base outras questões? Há um historiador norte-americano, que tem dois livros com título provocatório, que pergunta as razões por que os ricos votam na esquerda e os pobres na direita. Não existem neste processo de globalização perdedores que podem ser instrumentalizados pela direita, e classes médias, com dinheiro e estudos que podem votar no centro-esquerda? Não existe um sector de perdedores da globalização, que com a inexistência de uma esquerda popular, deslocam o seu voto de protesto para a extrema-direita?

Há sectores que estão ressentidamente a votar na extrema-direita. Mas é preciso ver que apesar da desaparição da esquerda, em países como a Itália, ser em grande medida proporcional ao crescimento da extrema-direita, não há uma correlação directa entre a perda dos votos da esquerda e o crescimento da extrema-direita. Não existe uma transferência directa de um sector para outro, como tantas vezes se procura fazer crer erradamente: há um crescimento da abstenção nos sectores populares.

Aquilo que existe em todos os países são classes populares, e as organizações que as representam, a levar no lombo permanentemente nos últimos quinze anos com esta economia política da crise permanente. O neoconservadorismo tem uma política da guerra permanente e o neoliberalismo tem a política da crise permanente. E é verdade que há problema de mobilização desses sectores populares, que no passado conseguiram inúmeras conquistas sociais, como nos chamados 35 anos gloriosos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, num país, como a Itália, que teve um fortíssimo partido comunista que não era apenas uma organização do partido, mas conjugava-se com a existência de sindicatos poderosos e organizações com milhões de pessoas, como a ARCI [Associação Recreativa e Cultural Italiana que envolvia milhões de pessoas e milhares de associações]. O desmantelamento de tudo isso tem uma história própria ligada à liquidação desse partido. O que sobrou de todos esses sectores, depois da dissolução do PCI em 1989, que confluíram na Refundação Comunista, manteve-se activo e com peso político durante uma quinzena de anos, tendem a ir progressivamente perdendo força nos seguintes ciclos eleitorais. Mas é preciso dizer que se a esquerda italiana se desmantelou, a francesa não se desmantelou, a espanhola também não e reconfigurou-se, podemos não gostar mas é assim, a partir do Podemos. A portuguesa não se desmantelou. O que havia de esquerda britânica no seio do Partido Trabalhista reorganizou-se e agora provavelmente está a ser desmantelada. Era necessário analisar situação a situação em cada um desses casos. Em Itália há um fenómeno especial que é o sistema eleitoral. Esse sistema dificulta o acesso ao parlamento e à representação de forças políticas abaixo de uma determinada percentagem (4%). O que que ajudou a desfazer as possibilidades eleitorais, primeiro da Refundação Comunista Italiana e depois do Partido Comunista Francês foram os processos de convergência eleitoral com a social-democracia, com o Partido Democrático, em Itália, e com o Partido Socialista, em França, em momentos de guinada neoliberal desses dois partidos maioritários nas esquerdas eleitorais. Esses processos não só deram origem a cisões nesses partidos comunistas como deram cabo da sua credibilidade eleitoral. Isto abriu o caminho a um reforço da ultradireita? Em ambos os casos, já existia historicamente uma extrema-direita. Em Itália, existe representação política da extrema-direita desde 1946. Em França, apenas desde 1986.

Mas a França também tem uma tradição de extrema-direita forte, mesmo depois da Segunda Guerra Mundial. Há o poujadismo que elege um grande número de deputados [52], entre eles Jean-Marie Le Pen. Não nasceu com a Frente Nacional.

Não nasceu, mas o sistema eleitoral francês, salvo na IV República em que era mais proporcional, dificultava a existência de uma extrema-direita francesa autónoma e não dissolvida, como era o caso português, em que estava disseminada nos partidos da direita clássica. A extrema-direita francesa teve muita dificuldade em obter representação de 1945 até 1986. Teve apenas o fenómeno do poujadismo entre 1956 e 1958. Depois pode ter havido um ou outro deputado individualmente eleito por via maioritária, sob o guarda-chuva do gaulismo, mas muito pouca gente. Já no caso italiano, o Movimento Social Italiano (MSI) - em que o social vinha da República Social Italiana da última fase mais radicalmente fascista do regime de Mussolini, de 1943 a 1945 - manteve representação parlamentar desde que foi legalizado em 1948. Mas já nas eleições em 1946, Fronte dell'Uomo Qualunque [Frente do Homem Comum, movimento anticomunista que se dizia também opor ao fascismo e que concorre em 1948 inserido no Bloco Nacional, posteriormente parte dos seus eleitos e quadros aderem ao MSI que então foi legalizado] concentrou o voto útil neofascista e obteve representação parlamentar. E quando se chega ao momento do desmantelamento do Partido Comunista Italiano e do sistema político italiano, por via da chamada tangentopolis [A Operação Mãos Limpas, inicialmente chamada Caso Tangentopoli (em português, “cidade do suborno”, termo cunhado por Piero Colaprico, cronista do jornal la Repubblica, referindo-se à cidade de Milão), foi uma investigação judicial de grande envergadura realizada em Itália. A operação teve início em Milão e visava esclarecer casos de corrupção durante a década de 1990 (no período de 1992 a 1996) na sequência do escândalo do Banco Ambrosiano, revelado em 1982, que implicava a Máfia, o Banco do Vaticano e a loja maçónica P2] e os julgamentos que vão comprometer grande parte do sistema político, nomeadamente a Democracia Cristã e o Partido Socialista, a extrema-direita altera-se, por um lado o Movimento Social Italiano passa a Aliança Nacional e finalmente deriva para Irmãos de Itália, actualmente. Por outro lado, constitui-se também a partir de um polo regionalista, xenófobo e separatista no norte de Itália, a Liga Norte, que com a chegada de Salvini à liderança do partido se espalha pelo o país e se torna a Liga. A Liga Norte estrutura-se via racismo e via uma linguagem ultraliberal, típica da extrema-direita escandinava, contra o Estado de bem estar social, contra os «malandros» dos imigrantes e os italianos do Sul e vai-se transformando na Liga, um partido que aproveitando a degenerescência total do berlusconismo e da Força Itália transforma-se num partido com 30% das intenções de votos, hoje reduzido a menos de metade. As sondagens dão-lhe 13 a 14% dos votos.

Em resumo quanto à extrema-direita europeia, há uma coincidência no tempo entre a crise da esquerda radical, da esquerda a sério, como chamei no artigo do Público, e o aumento da representação eleitoral da extrema-direita, não porque haja uma transferência directa de votos, mas porque há uma desmobilização fortíssima, verificável em todas as democracias ocidentais, do eleitorado popular. Tenho repetido isto muitas vezes: se formos a ver a mobilização dos eleitores entre as freguesias mais pobres e mais ricas da cidade do Porto, a diferença é de mais de 15 a 20 pontos percentuais. Por que é que isso cria uma ilusão e permite dizer a alguns que o voto de esquerda alimentou a extrema-direita? Porque em alguns casos no Reino Unido, em regiões desindustrializadas, em algumas regiões desse tipo nos Estados Unidos, em alguns sítios da França e da Itália, isso pode ser verdade: encontramos a extrema-direita em percentagem elevada em regiões pós-industriais, na qual já não existe uma classe operária quanto tal, mas existem operários reformados, em que os filhos e netos já não são trabalhadores do sector produtivo, mas muitas vezes são apenas mão-de-obra precarizada do sector terciário. Isto torna-os muito diferentes. É muito chato de dizer, mas é muito diferente mobilizar do ponto de vista social e político os trabalhadores camponeses e operários do que mobilizar os trabalhadores do terciário. A perda da taxa de sindicalização e da representatividade das organizações operárias tem tudo a ver com a terceirização. Esses fenómenos localizados muitas vezes não são estáveis: o voto das regiões operárias do sul de França e dos arredores de Marselha, que passou para a Frente Nacional, deixou de o fazer com a emergência do Mélenchon. E se formos ver, em Paris, onde a Frente Nacional nunca penetrou nos subúrbios operários, dá-se nas últimas eleições uma maior mobilização do voto popular e há a divisão que é habitual: a Paris do Norte e do Leste vota à esquerda, e a Paris do Sul e do Oeste à direita, que corresponde à divisão das zonas operárias, hoje com trabalhadores precários, terceirizados e de origem imigrante e a zonas mais burguesas.

Mas mesmo assim persiste uma divisão do voto popular em França. Há sectores mais jovens, de origem imigrante e precários, que votaram Mélenchon, e depois há sectores populares em zonas desindustrializadas e com gente mais velha e menos habilitações académicas que votaram na extrema-direita.

Fez bem esta diferenciação porque também tem que ver com a idade. Embora em Portugal, e um pouco por toda a Europa, no cenário pós-pandemia, os eleitores mais velhos tendem a votar no poder. Isso foi muito evidente em Portugal, todos os estudos dizem que a grande maioria dos mais velhos votou PS, e em França votaram sobretudo em Macron.

Em Portugal, deve ter ajudado o facto de Passos Coelho ter cortado as reformas durante a troika.

Evidente. Mas também é verdade que, no caso francês, votaram num homem que quer elevar a idade da reforma. Voltamos à questão que colocou várias vezes: há um segmento das classes populares que se auto-representam, com motivos materiais para pensarem-se assim, como os perdedores da globalização. Ora bom, registam-se três tipos de reacção: aqueles de que forma irregular, ao longo do tempo, continuam ou voltam a votar à esquerda; uma grande percentagem que se abstém, por exemplo na maioria dos países, salvo em França, os jovens estão a votar muito pouco. Os jovens são campeões da precariedade. Sabemos que as populações jovens de origem imigrante são quem mais precários têm. Em terceiro lugar, votam em alguns países, em menor número, na extrema-direita. Mas isso não acontece em muitos lugares. Em Espanha, por exemplo, o Vox não tem o eleitorado popular. Em várias regiões de Itália, sobretudo no norte, isso acontece. Eu não conheço com detalhe os dados de vários países escandinavos e da Áustria. Na Alemanha, a maior representatividade da extrema-direita encontra-se nos landers da antiga Alemanha Democrática, onde a taxa de desemprego é sempre duas a três vezes superior aos landers ocidentais, onde os salários continuam mais baixos, etc. Esta terceira opção de votar na ultradireita não é exercida porque esta faz supostamente uma crítica às democracias neoliberais. O que a ultradireita faz de uma forma atraente para uma parte do eleitorado popular é a receita de sempre, a mesma dos anos 30, é vir responsabilizar os imigrantes e as minorias étnicas. Para mim, uma das chaves do sucesso da extrema-direita é a relegitimação e a reentrada em força de todo o debate - nós dizemos, e bem que é do racismo e xenofobia - da «teoria do choque de civilizações» que unifica o conjunto de teses das direitas. E aí os neoliberais estão ao lado e a par da ultradireita. É a afirmação da tese que o Ocidente está permanentemente sob ameaça que dá força à extrema-direita, e essa afirmação, da tese do choque entre civilizações, é alimentada por todos os sectores de direita.

Antigamente quem sofria de problemas sociais, como a pobreza e a desigualdade, tendia a identificar estas questões como colectivas e devido ao funcionamento da sociedade; hoje, a comunicação social, grande parte dos partidos e até o centro-esquerda afirmam o discurso da meritocracia que transforma tudo em questões de sucesso ou insucesso individual. Esse discurso ideológico não tende a abafar a revolta social e dar espaço apenas à raiva e frustrações individuais?

É a velha lógica de todo o conservadorismo histórico, aquilo que os franceses chamavam reacção. A direita há 200 e tal anos que procura dar uma justificação moral para os problemas sociais. É por isso que tem tanto sucesso falar da corrupção e que, na Américas e em países da Europa do Sul, a corrupção é uma das bandeiras centrais da extrema-direita. Vemos que não há correspondência directa entre o que os dados dizem ser o nível de corrupção média nas administrações públicas em várias sociedades e a força que possa ter a ultradireita nesses países. Para além da questão da corrupção, entra a discussão daquilo que toda a direita e sectores da Igreja Católica chamam «a ideologia de género», acusando a esquerda de pretender atacar a família e aquilo que é natural, e dizendo que a esquerda pretende atacar Deus e a religião. A ultradireita, salvo no caso francês, tem uma forte componente religiosa aplicada às ideias do choque de civilizações. Há um discurso ocidentalista da parte de todas as ultradireitas que descreve o que considera o modo de vida europeu barra ocidental, que se opõe aos invasores imigrantes. Nessa descrição está sempre metida a matriz religiosa e cristã do Ocidente.

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